Páginas

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Atrás da porta



Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei, eu te estranhei
Me debrucei sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito, teu pijama
Nos teus pés ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que ainda sou tua
Chico Buarque

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Procura-se Maria

Era uma Maria como qualquer outra Maria, dessas Marias que a gente pousa os olhos automáticamente no bar lotado antes de reparar em qualquer Joana.
Era uma Maria que conhecia apenas dos bares cheios de outras Marias. ( E Joanas,  Helenas, Ritas, Antonietas e Isabéis)

Era Maria que não era minha,
até a noite que a tomei pelo braço e então fui Lampião, e ela, Maria-bonita.
A mais bonita das Marias

Foi minha Maria a noite inteira,
Foi Maria-minha quando me escreveu na seguinte manhã,
Foi Maria-minha entre minhas pernas e fui por uma noite feliz entre as pernas que eram de minha Maria.

No entanto, outro dia raiou, outra dose tomei
Percebi que Maria não era mais minha.
Agora era Maria-dos-bares, Maria-das-dores, Maria-dos-olhos-mágicos (olhos que nunca mais me pousaram)

Destes olhos de Maria-de-ninguém
Emanavam um ácido líquido cor de nada
E um monte de histórias que jamais conheci.

Só conheci a história da Maria-de-uma-noite-só.
Que na verdade pode até ser uma Joana
Desconfio que jamais foi minha, essa Maria-Joana

Ao passar o café, no fim da tarde
Esperei aparecer na borra a boca de Maria-minha
Que não apareceu, e nunca mais escreveu

Quando chegou a noite
O telefone paralisado, na mesa da sala
Não tocou, e Maria não voltou

Quando, por fim, uma carta me chegou
Era de José, me dizendo "Por onde andas?"
Amassei e joguei fora.

Eu queria mesmo era Maria.





sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Farol

Aquela dor no peito era resultado de um milhão e meio de nós contorcidos e apertados, amarrando lembranças duras umas contra as outras.
No meio daqueles nós de marinheiro, existia um pouco de nós duas, cada vez mais distante uma da outra.
Um oceano inteirinho de saudades
E um navio que sai do porto
Causando um espetáculo de lenços azúis-desbotados
Acenando contra o vento
"Até logo, ou um até nunca mais"

Quando existo

Se existo é por erro de cálculo,
Quando não existo, sou o corretivo escolar grosseiro aplicado em um erro vulgar.
Se existo, sou uma máquina ligada à outras máquinas. (125 miligramas psicotrópicas)
E quando não existo, a paz se espalha nas porosas terras desse planeta.

Quando existo, sou o silêncio na hora da verdade
E o burbúrio no sagrado momento do requiém.
Mas se deixo de existir (se deixo de existir, Deus do céu, deixo de existir!)
Sou o exército que marcha entorpecido em algum tipo de fé em alguma espécie de força que nem se quer é minha.

Se existo, sou o infeliz inverno que mata velhos descalços
Mas se deixo de existir, o sol brilha atrás dos montes de uma terra prometida
Quando existo, eu sou o sopro que esfria o café
E quando deixo de existir, lírios se abrem num campo iluminado.

Sou o pau que espanca o cachorro sarnento no meio-fio
A arma do criminoso que mata um sujeito sem culpa
Sou o limbo na água potável.
E a seca no sertão
A bituca de cigarro que causa incêndio na última floresta da terra
O sangue que escorre nas coxas da menina estuprada por um filho da puta
Sou a puta que joga o filho na rua
 E a bomba que  acinzentou a rosa de Hiroshima.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Luca

Luca meteu um cigarro na boca e saiu em diáspora cortando os ventos daquela manhã feverina. O sol agredia os olhos e coloria o céu, ao mesmo tempo que ela sorria sem estar feliz, e ensaiava ranger das mordidas que nunca precisaram de fato existir. O esmalte dos dentes era mais desgastado que a mochila agoniante presa aos ombros, pesando nas omeoplatas.
Mordia os próprios dentes e movia as têmporas sem saber o porquê. "Exgomungada do diabo" disse a si mesma ao olhar seu reflexo no vidro de um carro preto.
Luca tem um par de seios moldados pelas mãos de um anjo, tem duas janelas no lugar dos olhos, onde se derrama pelo céu, uma intensa pincelada de anil, outrora, cinza como os trilhos de um velho trem, ou a fumaça que fica um tempo presa nos fios do cabelo fino, e então vai embora, vai pela janela, nada aqui se dá o luxo de usar a porta.
Luca pula a janela as vezes, depois do colégio, e conta as nuvens, exatamente nua no campo mais distante. Nua, despida dos dogmas e dos pudores, nua de sí mesma, e conta até esfriar.
Volta então, balança os alvos pés do telhado, sempre olhando pra cima, com os esmaltes descascados cor de ébano, apontados para baixo.
Luca, minha querida, se você for pular, não esqueça os seus sapatos de pano.