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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Diálogo de domingo

 Quase não tínhamos livros em casa e a televisão sempre gritava alto demais.
 Pessoas que eu não conhecia comiam conosco na hora do jantar, dançavam sem nenhuma expressão de arte - e isso eu sabia muito antes de saber o que era a arte- dormiam e acordavam bonitas, com o rosto pintado.
 As crianças, eram sempre saudáveis e limpas. Pateticamente limpas.
 Toda essa vida se passava dentro da televisão, tomando as nossas vidas. E logo eu, um menino tão cheio disso. Dessa coisa, que chamam de vida. Não, não que em justa meia dúzia de anos de idade eu saberia lhes falar sobre a vida com tanta exatidão, mas garanto que sabia muito mais do que aquela gente, os modelos de vida da televisão.
  Foi assim que reparei que a casa era triste, os diálogos eram de plástico, a minha mãe olhava com uma melancolia única para o espelho.
 Todos nós ainda éramos jovens, o meu pai, minha mãe e eu. Ainda assim, tanta coisa cinza preenchia os dias naquela casa.
 Por mais que não existisse motivos aparentes para viver: viviam. Por algum raio de motivo se levantavam logo cedo, bem cedo mesmo. Palavras eram balbuciadas em meio ao sono enquanto se forrava a gaiola do passarinho com jornal. Até então eu não conhecia outra finalidade para o papel fino, mas de todos nós, o passarinho era o melhor. Conseguia ser mais triste, e isso o tornava melhor. Melhor porque sabia sentir, e sentia com tanta intensidade que seu canto era pranto, os olhinhos brilhantes de sabe-se-lá-o-quê me olhavam, e olhavam para o jornal, e descobri que de tantos, ele era o mais sábio. Ao menos, tinha o jornal.
  Passam-se alguns anos, aquele prisioneiro veio a falecer numa manhã de domingo enquanto eu era violentamente acordado com repetidas pronúncias do meu nome, brotavam da garganta do meu pai e se entalavam dentro do meu ouvido. Íamos a igreja.
 Ninguém deu importância pro corpinho que desfalecia na gaiola, pois todos eram apressados demais, atrasados demais e a culpa era minha. Eu dormi demais. Sonhei demais. Sonhara com dias tão melhores, tão distantes....

  Cresci, me tornara homem. Não, não desses homens como meu pai, pois meu pai dizia entender de religião e política, mas não entendia o fascismo, a origem dos preconceitos, a invasão contra privacidades, a origem do pudor, dos pecados e preconceitos. Não entedia nada.
 Por minha vez, nunca fui entendido. Fui entediado. Apesar da infância cinza, eu amei, mas amei em silêncio. Amei Camila, da escola. Mas nunca a contei. Amei os Beatles, e nunca cantei. Amei os livros, nunca os cheirei. Amei tanto! Os rios, os mares, as cordilheiras dos Andes! Amei o Grand Canyon e os filmes de velho Oeste. Amei tanto, tanto o cheiro da grama e o azul do céu. As constelações que dançavam como se deve dançar. Até aquele pobre pássaro, eu amei. Mas não o libertei e isso me aflige tanto todas as vezes, quando me sento no parque e ouço o cântico dos livres.   
 Tento entender um pouco das coisas.
 Tentei arduamente imaginar a imagem de meu pai antes de se tornar o homem amargo debruçado em cima do piano, será que era como eu? -um arrepio me gela a espinha- Imagino então uma carcaça se formando sobre meu corpo, e como se eu pudesse enxergar minh'alma, via um pequeno feixe de luz se apagando, diminuindo, até virar uma diminuta pedrinha verde, caída sob escombros e muralhas, barreiras de tijolos e quadro enormes portões enferrujados. Tudo aconteceria tão rápido e eu não veria mais o mundo que vejo, mas seria eu merecedor desse mundo, uma vez que nunca andei descalço sobre a terra vermelha? Deixei marcas no mundo, mas fui egoísta o suficiente para não deixar que o mundo me marcasse.
 Não há cicatrizes nos joelhos, nem nunca houve um braço quebrado.
 O medo de me tornar como meu pai passara agora a me tomar por completo, e eu não sabia por onde fugir.
 Certo domingo, desses corriqueiros, onde passarinho morre e ninguém se importa, eu estava com tanto medo de me perder do mundo e da minha alma, que minhas mãos tremiam.
  Havia pressão no meu ouvido, as luzes da casa eram tão iguais.
  Poupo seu tempo de te contar sobre como o tapete era empoeirado da mesma maneira, a televisão ligada da mesma maneira, a janela da cozinha pacata e ordinária, sempre do mesmo jeito. Basta que você imagine o lugar mais igual do mundo.
  Foi então, como de costume, quando meu pai mastigava a comida de forma boçal e tão igual, nunca olhando para mim ou para minha mãe, com os olhos fixos na televisão, enquanto se passavam notícias da tarde, que cheguei no meu limite.
 Meu pai com todo o desdém de quem fala consigo mesmo e não conosco, xingava qualquer coisa, tateava a mesa para encontrar o controle remoto e mudar para o futebol.
 Anunciava: fodam-se os médicos cubanos. -E a voz da repórter foi cortada como quando se passa uma navalha por um fio de cabelo-.
 Preguei num movimento único o garfo pesado na mão de meu pai, o sangue escorreu uniforme e brilhante. Brotava em forma de pequenas gotinhas justamente do tamanho dos olhos do canário falecido e se transformavam em pequenos riachos vermelhos.
 Foda-se você pai, foda-se VOCÊ.
 Minha mãe sorriu pra mim pela primeira vez.