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domingo, 3 de junho de 2012

Eu, Clarisse.

 Sim, é daquela música cantada com expressão de dor que eu falo. Pensei que havia saído da minha moda, tanta tristeza assim de uma vez só pelo mesmo maldito motivo, mãe.
 Comprei meia garrafa de vinho hoje, neste domingo completa seis meses e olhando para baixo eu só tenho certeza que quero evitar a cor branca, azulejos, lençóis azuis, luz ofuscante, olhar sem direção. Cada vez que fecho os olhos me vem a imagem das minhas mãos esfoladas, meu pescoço imobilizado e os joelhos cobertos por lençóis azuis, numa maldita cadeira de rodas. É tudo que eu me lembro, mas eu consigo reproduzir perfeitamente os dias antes disso tudo acontecer. Quem sabe os anos. Já parei no hospital bem antes disso, e dessa vez não tive culpa, eu tinha apenas meia dúzia de anos e já acordava pensando em como iria escapar das suas agressões que me doíam muito mais a alma do que o corpo, que de tão pequeno, me escondia embaixo da escrivaninha enquanto via suas sandálias se arrastando, iam e voltavam, o barulho das cápsulas das suas pilulas, o som da sua voz estridente gritando, e os vidros se quebrando. Se lembra como é que eu consegui todas essas imperfeições? bem, eu me lembro. E não sei se mais alguém sabe, que quando fui atropelada aos cinco anos, eu estava fugindo de você, e meus joelhos ainda doem. Sinto essa dor todos os dias, me lembrando que passei por isso sozinha, sobrevivi à você. Não tive meu pai ao lado como meu irmão teve, pois nem meu pai te aguentou. A verdade é que nunca me senti em casa, e até os refúgios que encontrava  as vezes eram mais confortáveis. O porão, a praça.
 Hoje, eu já desisti de procurar refúgio, ainda não te olho nos olhos, mas já não temo, sei que não quebro mais. O que me dói é a lembrança pintada com giz de cera, de como sua voz ficava mais agradável enquanto eu tomava um baque de 3 gramas no braço esquerdo, eu sentava no meio do meu quarto nesses domingos à tarde, metia fundo a agulha na veia e fechava os olhos, enquanto você parada no lado de fora gritava todas as coisas das quais não consigo me lembrar, dezessete segundos eram o suficiente para que tudo mudasse de rítimo, para que sua voz se tornasse agradável, quase com humor. Dezessete segundos e três gramas de cocaína barata, colher, vinagre, isqueiro, seringa, corda, árvore. - Então era do hospital que eu estava falando, manchas de sangue nos meus olhos, o que foi aquilo? não sei, não me lembro. Ah que bonitinha que você estava do meu lado na maca, de vestidinho florido, segurando minha mão, se fazendo de vítima de como a vida é tão cruel com você e o que será que você fez de tão errado que mereceu ter a filha que tem, e ai meu deus, liga pro pastor, vem aqui colocar essa mão nojenta na minha testa cheia de óleo de cozinha com essência de sabe-se-lá-o-quê enquanto grita "sai do corpo dessa menina, satanás" e eu rio, rio desesperadamente, por que não é possivel que tenha acontecido tanta merda. Vem cá, homem de gravata, quanto você pagou nesse terno? é com o dinheiro que as velhinhas guardam embaixo de colchões rasgados que você comprou? você sempre usa ele, ou só em dias que você expulsa demônios?
 Abre os olhos, seu verme infame. O demônio não existe, e se existisse não sairía de mim, por que EU saíria dele. Entende? é simples, simples. Agora olhe as marcas roxa nesse pescoço, isso aqui é real. Real até demais. -depois eu fechava os olhos e ria de novo, ria torta, ria enquanto era segurada e mais uma dose cavalar de sedativo era aplicada intra-venal; Cuidado, crianças. Pois se falar a verdade agora, eles te internam.
 Então hoje fazem seis meses. Ontem estive bem em frente ao hospital onde tudo isso aconteceu. Eu sentei na calçada e minhas lágrimas não caíam, elas paravam ao redor dos meus olhos.

Aonde foi que nós erramos, mãe? eu deveria ter me enforcado com o cordão umbilical.


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