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domingo, 19 de maio de 2013

Peso do mundo

Acordou de mal jeito naquele sábado.
Estomago embrulhado por conta do sentimento de nao conseguir concluir nada direito. Havia bebido demais na noite anterior e acordado diversas vezes desidratada, engolindo a golpes copos de água. Sonhara com um amor mal resolvido, mal terminado, dolorido até os dentes e ainda tremia. Era difícil engolir a saliva com gosto de medo de adormecer e sonhar novamente com aqueles olhos castanhos e agressivos, anfetaminados, doentes.
.....

Acordou de mal jeito naquele sábado. Pudera! na sexta feira já havia sonhado com calouros e isso também a fazia tremer. Ia mal em matemática e as provas já iam começar. Teve medo de compartilhar seu terror noturno com alguém, estava assustada. A verdade é que vivia assustada desde que voltara a sonhar. Tinha se esquecido da sensaçao abstrata e bizarra que se é submetida quando se resolve parar de tomar o sedativo inibidores de sonhos, os que tomou por cinco anos. Estes lhe serviam também como fuga da realidade, quando tomados em doses brutas acompanhadas de vinho tinto.
Já se faziam trinta e duas horas desde o último comprimido do novo tratamento e ela nao queria ter de toma-lo para afastar essas sombras de tragédia.
 Olhou-se no espelho. Os olhos úmidos, a boca seca, pele sem cor. Sem motivos, achou-se até bonita.
 Procurou entao outra fuga, qualquer coisa que distraisse sem dilacerar e sem deixar um bocejo químico. Porém tudo estava limpo, limpo até demais, Provavelmente tinha limpado o quarto muito mais vezes do que uma pessoa normal limparia. Havia garrafas de vinho, mas ela precisava parar de beber, precisava mesmo.
 Sentia também um medo incontrolável de sair e ser chata, séria, detestável, ironica e trancada no proprio mundo da desvontade de socializar. A bebida faria isso por ela, faria ela sorrir sem ter vontade.
 Decidiu derreter chocolate e voltar para a cama, onde tentaria dormir um pouco, já que a embriaguez havia passado e sobrava apenas a ressaca moral.
 Enquanto movimentava a colher na panela, percebeu que suas unhas estavam compridas e exatamente vermelhas! Sentiu vergonha, Sentiu-se promíscua e ridícula.
 O cheiro do doce logo a fez esquecer do detalhe gritante e entao lembrou-se de Léo. O pequeno, que vivia com o pai dela, tinha imensos olhos famintos de carencia. Poucos tres anos e já se via muito naqueles olhos. O pai era um bruto, um tosco, de tristes olhos identicos aos dela. Recentemente, este abriu uma ferida no peito da menina que ninguém ousaria dizer que ela vai cicatrizar. E nao vai.
 Balançou a cabeça, tentou esquecer a cara do homem. Nao conseguiu. Imaginou o pai morto, e pensou se seria capaz de chorar.

Seria. Claro que seria. Choraria de raiva e afliçao, a mesma coisa que ela sente toda vez que o lembra vivo.
Depois sentiu culpa, tudo isso deve ser errado, ninguém pode imaginar o proprio pai morto. Que coisa mais kafkaniana!

 Lembrou-se do padrasto que partira sem se despedir, largando a mae nas mínguas de todo o dinheiro que lhe faltava, do velho só sobrou a cadeira de balanço com a vista sinistra que ela gostava de ver. O dia amanhecendo atras do pé de cajú morto, da lembrança cruel da jabuticabeira, do pé de limao que vivia lhe espetando os dedos, e este ficava encostado no muro da casinha dos fundos, onde fora gravado a ferro: Marcos, Marcela, Murilo. Em breve a casa seria vendida e a menina nao teria outra lembrança do falecido irmao menor. O mais velho agora era um homem, e já nao conversavam. Nunca conversaram. Ela só sabia falar de livro e alcool, nada do que ele gostava. Pensou consigo "como é engraçado nao conversar com o homem que mais amo na vida"
 Sentiu-se só. Sentiu-se burra. Sentiu-se vazia e por fim, quase morta de tristeza.

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